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quarta-feira, 17 de março de 2010

O estranho em nós mesmos

a coletânea Um episódio distante, o escritor Paul Bowles trata das relações entre o Ocidente e o Oriente



  Divulgação
As sempre tensas relações entre o Ocidente e o Oriente aparecem com espantosa nitidez, a partir dos anos 1940, nos primeiros relatos escritos pelo escritor americano Paul Bowles (1910-1999), que viveu 50 anos no Marrocos. Essas ficções de juventude chegam, agora, ao público brasileiro reunidas em Um episódio distante (Alfaguara, 232 páginas, R$ 38,90, tradução de José Rubens Siqueira), conjunto de 12 contos mais uma breve novela, datada de 1993.
Aspectos como a obscuridade, os sentimentos arcaicos e o irracional, de que nossos preconceitos ocidentais ainda hoje desconfiam, tomam formas espantosas em um relato como “Ele da Assembleia”, a história de Ben Tajah, que um dia, em plena rua, encontra uma carta caída no chão. O problema é que seu nome vem escrito no envelope. Ao abrir a carta, ele depara com uma frase enigmática: “O céu estremece e a terra tem medo, e os dois olhos não são irmãos”.
Logo depois, Ben perde a carta e, mais um pouco, já duvida de que ela tenha existido. Mas, se não existiu, de onde tirou aquelas palavras? Passa a crer que elas lhe foram sopradas pelo demônio. Para enfrentar seu medo, conta com a ajuda de um homem chamado Ele da Assembleia, que carrega no pescoço um colar de ampolas de penicilina e se julga prisioneiro em um caldeirão. O homem define a situação dos dois: “Funcionamos de trás para a frente. Se temos alguma coisa boa, procuramos alguma coisa ruim no lugar”.
O estranho relato contém alguns elementos fundamentais das relações do Ocidente com o desconhecido. A dúvida, que impede a confiança. O medo, que se esconde nas pequenas coisas – como uma simples carta largada no chão. A ideia de que, mesmo no Bem, sempre se infiltra alguma parte secreta do Mal.
Paul Bowles foi, nesse sentido, um profeta. Suas ficções breves – antecipando o magistral romance O céu que nos protege (1949) – adiantam a atmosfera de insegurança e de cegueira que separam Ocidente e Oriente. Quando, em 1947, o escritor se mudou para Tânger com a mulher, Jane Bowles, tentava, justamente, romper essa cadeia de medo. Soube ver na estranheza e na diferença um tipo singular de beleza. Soube aceitar o incompreensível como parte essencial da existência.
A desconfiança para com a realidade se exprime, de maneira luminosa, em um relato como “O escorpião”. Uma velha vive sozinha em uma caverna. Um dia, um de seus filhos reaparece. Ele pede que a mãe o acompanhe em uma pequena viagem, sem revelar-lhe o destino. A relação entre mãe e filho é de absoluta imprecisão. Não lhes resta alternativa: ou, mesmo às escuras, confiam um no outro ou não podem mais seguir juntos. Na saída para a caminhada de três dias, esbarram com um velho sentado em uma pedra. O filho pergunta quem é, a mãe diz que não o conhece. “Está mentindo”, comenta, e isso é tudo. Não se sabe quem era o homem nem o destino de mãe e filho. Tudo o que temos são fragmentos do mundo real – nunca o real mesmo.
Como viver em um mundo assim, em que o significado das coisas sempre nos escapa? Não há outro recurso além da confiança. Não é preciso ir muito longe, o estranho se esconde no banal. Esconde-se em nós mesmos. No relato que dá título ao livro, um professor procura caixinhas feitas com úberes de camela. Um homem se oferece para guiá-lo. Leva-o ao deserto. As ameaças reais são precedidas por sensações de insegurança, que lhe parecem bem mais perigosas. Tudo é impreciso – e, para seu horror, o professor descobre o irracional e o estranho não no outro, mas em si mesmo.
Bowles antecipa, assim, aspectos cruciais do mundo contemporâneo, como a facilidade com que atribuí mos o Mal aos outros, a invisibilidade dos motivos que regem a vida cotidiana e a brutal dificuldade que temos de pensar. Não é um mundo fácil: se queremos defrontar o estranho, talvez devamos começar diante do espelho.
Shepard Sherbell
ESTRANGEIRO 
O escritor Paul Bowles em sua casa em Tânger, em 1969. A coletânea 
Um episódio distante trata das relações entre o Ocidente e o Oriente

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